Cidadania, Edifício Inacabado

Por Dr. José Dias Bravo
Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça

Fonte

Revista Liderança Hoje
Janeiro/Março 2002

Nunca o conceito de cidadania ganhou tanta ressonância pública e social como nos dias de hoje. Só que os seus contornos e limites estão longe de ser definitivos de modo uniforme no concerto das Nações e dos Estados.

Enquanto para determinadas Sociedades o conceito de Cidadania ganha expressão na plenitude dos direitos humanos desenvolvidos e postos ao serviço do bem comum, para outras, sofre o conceito constrições individuais impostas por uma concepção social ou histórica.

O nosso ordenamento tem como fonte jurídica da cidadania a Constituição. Aí se proclama que a arquitectura jurídica da República Portuguesa é a de um Estado de direito, indispensável pano de fundo para a plenitude do exercício da cidadania, aí se enuncia que ninguém pode ser perseguido, excluído, marginalizado ou ostracizado pela cor da pele, em razão do sexo ou pela via do credo que professar.

É, pois, a Constituição o Programa do Estado para a cidadania, que define os seus próprios direitos e deveres para a promoção do bem estar e da qualidade de vida dos cidadãos portugueses.

Mas também constitui o repositório dos direitos e deveres fundamentais dos cidadãos portugueses dentro e para a definição e exercício da cidadania.

Aliás, não há cidadania que se possa desenvolver sem a plenitude do exercício dos direitos e liberdades fundamentais dos homens e das comunidades que estes integram.

Entre estes contam-se os direitos, liberdades e garantias pessoais, tais como - e exemplificando - o direito à vida e à integridade pessoal, o direito à liberdade e segurança, a liberdade de expressão e de informação, e sobretudo, porque em nosso entender constitui a expressão mais autêntica do exercício das liberdades a liberdade de consciência, religião e de culto.

No início deste ano, tendo como projecção o novo milénio ainda no seu dealbar, e agora visionando a situação portuguesa, há que repensar o exercício em Portugal da cidadania sobretudo no que concerne à liberdade religiosa.

A religião oferece à consciência de cada indivíduo a presença de um Deus Supremo, fora e acima dele mas ao mesmo tempo com ele interagindo, sempre presente, omnisciente e omnipotente que representa, afinal e na realidade concreta, o garante da liberdade de cada homem.

Para nós, e agora no plano da Mensagem de Cristo, desenvolve-se a liberdade religiosa no domínio da libertação de todas as formas de escravidão, o que diz bem do seu relevo e importância quer para o indivíduo quer para a Comunidade.

Recordemos a propósito as Palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo que o Evangelho segundo São João revela de modo lapidar: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” Evangelho de São João 8:36.

Nesta perspectiva, a cidadania e, até, o edifício do Estado de Direito passam pelo desenvolvimento de todos os direitos individuais sem excepção ou constrição de qualquer deles.

Em Portugal, porém, quer historicamente quer ainda hoje, a cidadania sofre de uma amputação ou de uma exacerbada limitação no tocante a um dos direitos fundamentais: o da liberdade religiosa.

Qualquer análise histórica e sociológica evidencia que a Sociedade portuguesa está estigmatizada por dois grandes factores neste domínio:

- Falta de liberdade e intolerância religiosas desde sempre, apenas interrompida por brevíssimo período temporal (1916-1936) e mesmo assim com fortes limitações.

- Hegemonização de uma Igreja dominante, a Igreja Católica, de braço dado com o poder político, única até 1911 e favorecida desde 1940 por uma Concordata claramente privilegiadora.

Estes dois factores deixaram na Sociedade portuguesa traços significativos de intolerância, perseguição, preconceitos e obscurantismo que nos nossos dias se revelam ainda na prática de órgãos do Estado.

Esperava-se que com a publicação da Lei de Liberdade Religiosa, todos estes factores tendessem a desaparecer e começasse a surgir à luz do dia um novo conceito de cidadania onde coubessem todos os portugueses sem excepção.

Pensava-se que com a Lei de Liberdade Religiosa desaparecesse a distinção entre cidadania de primeira, para uns com todos os direitos e benefícios - os portugueses católicos mesmo que não militantes ou até formalmente crentes - e cidadania de segunda, para os crentes das outras confissões, apesar do seu relevo histórico na Europa e no Mundo.

Porém, a publicação no decurso do ano 2001, em 22 de Junho, da Lei nº 16/2001, da Liberdade Religiosa, esteve longe de construir o novo edifício da cidadania ou se se preferir do Estado de direito para que aponta a Constituição.

É que esta Lei, ao ressalvar no seu artigo 58º a vigência da Concordata e de toda a legislação aplicável à Igreja Católica, já existente ou a construir, acabou por manter no Estado Português um duplo e equívoco conceito de cidadania em matéria de liberdade religiosa, continuando a existência de cidadãos de primeira e de segunda.

Para os primeiros, que sempre tiraram proveito da falta de liberdade religiosa, a continuação de um sistema - o da Igreja Católica - autónomo do próprio Estado em que este vai ao ponto de abdicar até da sua própria concepção e filosofia, permitindo a interpretação das normas concordatárias segundo a visão da própria Igreja Católica mesmo em aspectos atinentes em exclusivo ao Estado.

Para os segundos, que sempre sofreram e sentiram a falta de liberdade religiosa a Lei de Liberdade Religiosa e ainda com todas as limitações e constrições que dela decorrem para a plenitude da liberdade religiosa.

Em suma, dir-se-ia que uma Lei que deveria servir para uma reposição histórica de um exercício da liberdade religiosa nunca vivida em Portugal mantém a situação anterior que se queria reformar e rever, continuando uma Igreja - a Católica - com a situação privilegiada anterior.

Ainda mais, para se observar como a liberdade religiosa é o parente pobre da cidadania em Portugal: dispondo a Lei, no seu artigo 69º que no prazo de 60 dias deveria ser publicada legislação sobre o registo das pessoas colectivas religiosas e dispondo as confissões e associações religiosas existentes de determinado prazo para requerer a sua conversão em pessoa colectiva religiosa, ainda tal legislação não foi publicada não dando o Governo qualquer sinal positivo nesse sentido.

Todavia, um sinal negativo e de grande insensibilidade veio a ser dado com o cancelamento do registo das associações religiosas existentes, olvidando-se todo o cortejo lesivo daí resultante.

O panorama que fica descrito sobre a cidadania em Portugal demanda no início deste ano uma vigilância atenta de cada um de nós.

Mas sobretudo requer que no nosso conceito diário de oração e comunhão com Deus intercedamos para que os órgãos do poder político sejam divinamente sensibilizados para uma mudança efectiva da arquitectura jurídica do Estado Português, com a consagração de um conceito pleno de cidadania. Até porque, como Paulo escrevia aos crentes em Filipos Filipenses 3:20, como cidadãos do Céu, conhecemos Aquele que tem poder para dominar todas as coisas.